Todos os dias vendo as vítimas de ebola se transformarem em números
na imprensa, a humanidade não reflete sobre a história das vidas
perdidas. Mas para quem trabalha diretamente com os infectados é difícil
não se envolver. Uma médica da ONG Médicos sem Fronteiras conta a
história de afetividade que desenvolveu ao tratar do pequeno Patrick, na
Libéria. A médica psicologa Ane Bjøru Fjeldsæter, de 31 anos, ficou um
mês trabalhando em Monróvia, capital da Libéria, pelo Médicos Sem
Fronteiras. O país é mais afetado pelo ebola, com 1.677 óbitos em 3.280
casos registrados (até 24 de setembro). Ela relata no depoimento abaixo a
história do "amigo do outro lado da cerca". A foto foi enviada por ela
para ser anexada em seu depoimento.
VEJA O RELATO:
A
Libéria está dividida por uma cerca dupla laranja. Construímos isso para
manter a doença sob controle. Construímos para nos separar (os
saudáveis, os privilegiados) deles (os doentes, os necessitados).
Construímos a cerca para nos sentirmos menos mortais. A fizemos com um
nobre propósito de barreira sanitária.
Patrick está no interior
da cerca, eu, do lado de fora. Eu o vejo todos os dias e nós sorrimos e
acenamos um para o outro. Ele é apenas uma criança, mas está brincando
com meninos cinco vezes mais velhos, como se estivesse tentando
compensar o fato de ser jovem demais para morrer.
Eles jogam dama e
pôquer quando têm energia para isto e escutam a BBC Africa pelo rádio
que eu trouxe um dia na minha roupa de “invasora espacial”. Patrick tem
um sorriso torto, tímido, e um hematoma perto do olho direito. Acaba de
perder sua mãe, mas seu pai está com ele neste lugar horrível.
Todo dia eu digo a mim mesma: Ane, não perca o seu coração para esta
criança que logo não estará mais entre os vivos. Ele está aqui por uma
semana e, então, terá partido para sempre. Como você vai fazer o seu
trabalho quando ele se for? Você não sabe com o que está lidando? “Isso
é coisa do ebola”, como dizem no rádio. Taxa de mortalidade de 90%. As
pessoas que estão daquele lado da cerca não voltam para este lado. Você
sabe que é perigoso se aproximar.
Digo isso a mim mesma todos os
dias e nunca ouço. É impossível não olhar para o sorriso torto dele
quando eu chego ao trabalho pela manhã. É impossível não notar as
pequenas mudanças diárias em seus níveis de energia. Não resisto em
acenar para ele ou verificar seu rosto e seu prontuário médico por
qualquer indicação, qualquer uma que me permita ter esperança de que ele
vai melhorar.
Tudo que me permita ter esperança de que vamos jogar
pôquer juntos um dia, sem todo o incômodo de eu ter que usar máscara,
óculos de proteção e luvas duplas.
Efeito ebola.
Então, a
manhã horrível chegou. Aquela para a qual eu tinha tentado me preparar. A
manhã na qual Patrick não acenava mais. Eu olho através da cerca e o vi
deitado em um colchão na sombra. Seus amigos mais velhos o rodeiam, na
ponta dos pés, preocupados.
Eu me visto. Temo o pior. Faço o meu
caminho passando pela enfermaria. Seu pai me diz que Patrick se queixou
de dores no estômago durante toda a noite. O menino tem os lábios
ressecados, febre, olhos brilhantes e nada da sua energia habitual. Ele
tenta sorrir quando me vê.
- Patrick, meu amigo, você não parece tão bem. Me preocupa te ver assim. Posso fazer alguma coisa por você?
Ele olha para cima, sussurra alguma coisa. Eu me inclino em minha “roupa espacial”. O que ele disse?
- Eu disse, você pode me arranjar uma bicicleta?
Oh, Patrick, onde você andaria de bicicleta? Você amava sua mãe e
estava perto dela quando ela ficou doente. Agora você está rodeado por
cercas laranjas e nunca vai aprender a andar de bicicleta. Você acha que
isso é apenas uma dor de estômago? Seus amigos mais velhos não te
falaram sobre o ebola? Ou será que eles abaixaram o volume quando na BBC
África falaram que, em breve, você estaria evacuando sangue?
Saio
do lugar. Não quero começar a chorar dentro dos meus óculos de proteção.
Eu me odeio por ter conhecido esse garoto. Por que eu nunca fico em
casa?
Tiro o resto do dia de folga. Prometo a mim mesma que vou procurar um emprego normal.
Na manhã seguinte, algo me leva de volta. Quero estar lá pelo pai de
Patrick, não importa o que ele estiver passando. Ele parece cansado, mas
sorri assim que me vê do outro lado da cerca. Assim que sento numa
cadeira ao seu lado, alguém me manda um sorriso torto e tímido.
Acenamos.
Vejo que Patrick não tem energia para sair da cadeira, então me visto
com a roupa especial para entrar na área de isolamento. Apesar de ver
apenas uma fração do meu rosto, ele me reconhece:
- Vejo minha amiga. Não vejo minha bicicleta!
Não posso contar a ele que não achava que sobreviveria até o dia
seguinte. Tento encontrar as palavras certas. Posso dizer que me
esqueci? Patrick olha para mim com firmeza.
- A mulher esquece, mas o homem não!
Patrick, de onde você tira essas coisas? Esse é o tipo de conversa que
você ouve do seu grupo? Prometa que vai começar a brincar com crianças
da sua idade um dia.
Patrick recebeu alta no domingo passado com o
pai. Ambos pareciam cansados. Eu mal podia acreditar que Patrick tinha
se curado do ebola antes que o hematoma perto de seu olho direito
desaparecesse. Ele tinha emagrecido tanto, que tivemos de amarrar suas
calças com um pedaço de barbante.
Receber alta do centro de
tratamento é algo confuso. Depois de semanas nas quais as pessoas têm
medo de chegar perto de você, de repente, elas querem te abraçar e te
beijar. Isso pode confundir qualquer um, até mesmo um jovem experiente
como Patrick.
Nas raras ocasiões em que alguém se recupera,
fornecemos um certificado que comprova sua cura. Patrick Poopel, de pé
aqui do meu lado da cerca, sorrindo timidamente e segurando certificado
de cura de ebola, pronto para aprender a andar de bicicleta.
Ao contrário do que se poderia pensar, Patrick, isso é algo que a mulher nunca vai se esquecer.
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